ENTREVISTA:
Ribamar Ribeiro, Diretor da Companhia "Os Ciclomáticos" falou à Coluna "Olhar Teatral", do Portal Eu, Rio!
Paty Lopes: "Somos uma Companhia de Teatro do subúrbio carioca com 26 anos de carreira. Ganhamos mais de 200 prêmios, temos 11 espetáculos em nosso repertório, já nos apresentamos por esse Brasil, por alguns lugares pelo mundo e temos muitas histórias pra contar". É assim que se apresenta a Companhia de Teatro "Os Ciclomáticos". No entanto, não vejo muito do subúrbio nos espetáculos de vocês, vejo sim uma brasilidade que poucos trazem aos palcos. De onde nasceu a ideia dessa força cênica folclórica de vocês?
Ribamar Ribeiro: O que mais tem em nossos espetáculos é o subúrbio e o periférico. A partir do momento que corpos favelados, periféricos, LGBTQIAP+, pretos e suburbanos sobem no palco e são vistos por plateias de todo o país, ali está o subúrbio em toda a nossa essência. Até porque não separamos quem somos e nem nossa identidade para criarmos e executarmos os nossos espetáculos. E estes corpos são nossos, dos integrantes de "Os Ciclomáticos Companhia de Teatro". São corpos que experimentam e vivenciam todos os dias todas as violências e as delícias de ser suburbano. E, por isso, estamos comemorando 27 anos de teatro legitimamente suburbano e periférico. Nossos espetáculos têm muito de diversos subúrbios: o subúrbio nordestino, das periferias paulistanas e esta cena folclórica. De falar destas temáticas nasce do desejo de trazer à luz muito destas linguagens que têm se perdido com o tempo e que também, por muito tempo, foram marginalizadas e excluídas, como o boi bumbá, o samba, o carnaval, a comédia popular. Este ano estrearemos dois espetáculos para a infância e juventude que trazem a cultura caiçara, o congado e o maracatu, artes indígenas e afro-brasileiras tão importantes. O primeiro chama-se "A Menina e o Sabiá" e o segundo espetáculo é denominado "As peripécias da princesa esperta que criava um piolho e não queria casar".
PL: Você é ator, diretor, dramaturgo, produtor, professor e sonoplasta, sempre vejo você ligado à cientificidade. Qual a importância do saber, do conhecimento, para o teatro? É possível um jovem artista ocupar espaço no palco sem o diploma universitário?
RR: Acho de extrema importância, pois precisamos ocupar estes espaços. Se eu não estiver na Academia para contar a nossa história, não teremos a nossa história contada. Por isso, acredito que, além da realização pessoal, é importante reverberar o nosso conhecimento. A metodologia do teatro-seminário elaborada por mim, hoje utilizada por diversos profissionais e companhias do país, tornou-se escrita e documento para que outros artistas tenham acesso e possam vivenciar esta experiência que foi forjada durante anos com a companhia. A arte pode acontecer em qualquer espaço e lugar. Nas minhas andanças, percebo que seria muito importante termos mais teatro nas escolas. Na verdade, vou mais longe: penso que todos deveriam fazer teatro, pois se tivermos este contato com o exercício de sensibilidade e alteridade que o teatro propõe, este ato de ser o outro e vivenciar o lugar do outro permitiria, no mínimo, a constituição de seres humanos melhores e menos cruéis. Não é o diploma universitário que define o artista, ele é mais um elemento que pode constituir a sua história. O que define o artista é a sua ética, atrelada à sua constituição estética, que pode partir da labuta diária da criação cênica.
PL: Qual a dica que você dá para as novas companhias de teatro, para os que estão começando? Digo, dicas além de palavras positivas.
RR: Uma companhia, para ser uma COMPANHIA, tem de saber lidar com o outro e suas diferenças, esquecer o glamour e valorizar o "corre" coletivo. Todos na companhia fazem de tudo, literalmente: varrer o palco, montar cenário, fazer produção, divulgação. Na companhia, é importante descobrir seus múltiplos talentos e apurá-los para que a companhia desenvolva. Apostar que a construção coletiva é muito forte e que, quando existe dedicação, todos podem crescer juntos. E lembrar que, no teatro, nada é pessoal e tudo é pessoal!
PL: Você trabalha com os imensos artistas Renato Neves e Carla Meirelles. No Brasil, tenho a sensação que o artista é descartável, principalmente com o passar do tempo. Qual o seu olhar para esses profissionais e como você os vê no futuro?
RR: Tenho o privilégio e a honra de dirigir estes grandes artistas. Eles são fundamentais no meu processo de criação, já que escrevo exclusivamente pensando neles, e eles estão que nem vinho, mais vivos e apurados em cena. Hoje, eles estão em cena mais intensos e com uma inteligência cênica, corporal, musical e vocal elaboradíssimas. Neste sentido, eu, como diretor, por conhecê-los profundamente em sua essência, posso propor os desafios mais loucos e outras experiências no palco, pois tenho certeza que farão brilhantemente. Eles, assim como os outros artistas, são a minha força motriz para acordar todos os dias, escrever novos textos e dirigir novos espetáculos!
PL: Teve um espetáculo de vocês que não me agradou muito, era ligado a tecnologia, essa que me irrita... Foi no Teatro Sergio Porto! Não me agradou porque também sempre espero de vocês o que me leva às minhas raízes, ao meu país. Impossível não pensar em vocês como o teatro de maior relevância do folclore brasileiro. Você, às vezes, se vê na obrigação de sempre atuar nesse segmento?
RR: Que bom que o espetáculo te atingiu de alguma forma. "Os Ciclomáticos" é uma companhia de repertório. Atualmente, a companhia possui doze espetáculos em repertório, ou seja, este tema sobre a brasilidade é uma parte de nossa obra. Temos outras temáticas que perpassam por diversos temas, como a racialidade em "Casa Grande e Senzala – Manifesto Musical Brasileiro"; os efeitos da ditadura em "A Corrente de Eléia"; o empoderamento feminino em "Minha alma é nada depois dessa história"; as questões acerca da homossexualidade em "Genet – Os anjos devem morrer". E agora a tecnologia e suas consequências no espetáculo "Tudo faz sentido", mas é mera coincidência. Isso mostra que a companhia é versátil e atinge diversos públicos e fazeres. Este espetáculo, especificamente, foi pensado para o público jovem que não está indo ao teatro e não gosta de teatro. Percebo que este espetáculo, tão diferente em nossa trajetória, atinge diretamente este público. Tivemos experiências incríveis com ele. Alguns dos relatos mais incríveis nos chegaram. Um deles foi de uma mãe que disse que o filho, após assistir o espetáculo, chegou em casa, pegou o violão que estava guardado e disse que percebeu que estava muito tempo no celular e havia esquecido o quanto gostava de música. A mensagem chegou. Isso é a importância do nosso trabalho. Tenho percebido que muitos espetáculos têm sido montados para agradar críticos, premiações e a classe artística, mas por muitas vezes são completamente desinteressantes para o público. O público sempre é o mesmo nas filas de teatro. Temos que buscar novos públicos e fazer espetáculos interessantes para todos os públicos e não apenas para uma classe elitizada. Devemos fazer espetáculos de hoje para quem come carne de hoje. Muitas pessoas que vão ao teatro pela primeira vez, na maioria das vezes, não volta, pois o teatro cada vez mais tem ficado chato e desinteressante. Falo isso pois, como nos apresentamos em todo o país, principalmente no interior e nas periferias, ouço muitos relatos com esta conotação. Por isso, acho que é urgente rever e pensar o teatro que queremos e para quem queremos atingir, pois não estamos indo nestes lugares atraindo novos públicos, principalmente o jovem. Este espetáculo trata de assuntos contemporâneos e próximos a eles: internet, fake news, tik tok. Isso também é cultura popular, aceitando ou não! É algo tão popular e perigoso que vivemos quatro anos de destruição da cultura, por acharmos que este assunto não é importante. Mas é importante e necessário e voltaremos com ele, a partir de junho, através do SESC Pulsar, pois é um assunto em voga, onde jovens estão sendo manipulados para executar atentados e praticarem atos terroristas através das redes sociais e da internet. O espetáculo é mais necessário e atual do que nunca!
PL: Vejo a Companhia Os Ciclomáticos muito atuante, sempre com cursos, palestras e espetáculos ocupando, principalmente, os espaços públicos. Essa necessidade nasce do Ribamar?
RR: Esta é uma necessidade minha como artista, pesquisador, professor e da companhia que, em sua maioria, é constituída por artistas docentes. Por ser uma companhia de pesquisa de linguagem e de repertório, percebemos que é de extrema importância a arte ligada à educação. Arte e educação devem caminhar juntas. Inclusive este mote é tão forte para a companhia que está descrita em nossa missão: “Promover arte teatral criativa com linguagens diversificadas, construindo de forma coletiva espetáculos teatrais e ações de formação artística". Entendemos que arte e pedagogia teatral estão no palco e é um ato político e de resistência.
PL: Você está desde a fundação dessa companhia. Se você voltasse no tempo, faria algo diferente?
RR: Sim, sou um dos fundadores, juntamente com Renato Neves e Carla Meirelles. Não faria nada de diferente, pois todas as vivências, desde os pedágios feitos nas ruas de Bonsucesso para a montagem de espetáculos, até hoje - de levar espetáculos pelo Brasil e pelo mundo - me forjou como artista e como cidadão, fazendo com que compreendesse que a minha arte tem muito valor e que a minha ética não está separada da minha estética.
PL: Vocês estão, neste mês de maio, viajando com o espetáculo "Ariano - o Cavaleiro Sertanejo", um dos mais belos que assisti. Digo isso pelos figurinos, pela força, pela alegria, pelo educacional, pela música, pelo próprio Ariano, o qual muito admiro. O que tem a dizer dessa obra tão bem-vinda?
RR: "Ariano – O Cavaleiro Sertanejo" é um presente! O carinho que recebemos com este espetáculo é algo incomensurável! Em 2018, recebi o convite do Sesc Rio para a montagem de um espetáculo em homenagem ao autor e dramaturgo Ariano Suassuna e a se realizar no mês de seu aniversário. Este grande desafio se tornaria a nova montagem de Os Ciclomáticos: o novo trabalho intitulado "Ariano – O Cavaleiro Sertanejo". Naquele ano, a companhia completou 22 anos de história e carreira. Diante de tantas comemorações, era necessário fazer um trabalho à altura do grande autor e da companhia.
Porém, havia ainda outro desafio. O convite ocorreu no final de abril e todo o processo de criação, montagem e estreia teria em torno de 35 dias. No primeiro momento, foi fundamental exercer esta liderança criativa como diretor artístico da companhia de forma objetiva. Convoquei uma reunião com os integrantes e coloquei a postos todas as questões referentes à montagem, incluindo qual seria a visão artística acerca da obra, lembrando que não havia ainda texto ou roteiro que norteasse a montagem, já que se tratava de uma obra inédita.
A criação de um espetáculo é semelhante a um conjunto de peças soltas sem sentido e que precisam de um caminho para que possam determinar um conceito. As pontas estão soltas, as ideias estão nebulosas e é necessário que se permita uma dose de loucura e lançamento no abismo para que um caminho seja definido. Para que tudo ocorresse de forma organizada, elaborei um plano de ensaio em que determinei o levantamento de cenas, a criação do desenho cênico, a direção dos atores, o tempo cênico e a encenação geral.
Neste ínterim, a partir deste primeiro contato, foi montado um cronograma intenso tanto de criação quanto de execução. Este momento foi crucial para que a realização da montagem obtivesse êxito e resultado. Os ensaios se iniciaram no dia posterior à reunião. Os artistas envolvidos foram divididos em equipes para que os processos andassem. Os atores Carla Meirelles, Fabíola Rodrigues, Getulio Nascimento, Júlio Cesar Ferreira, Nivea Nascimento e Renato Neves, o figurinista e visagista André Vital, o cenógrafo Cachalote Mattos, o iluminador Mauro Carvalho e a preparadora vocal Juliana Santos, todos foram envolvidos diretamente neste processo. E, como na companhia, trabalhamos com o conceito de “multiartistas”: todos agiram como colaboradores em outras etapas dos processos, de acordo com suas aptidões. Desta forma, pode ser ator da companhia e também atuar como figurinista, por exemplo. Esta formatação de trabalho intensifica e agiliza o processo de criação, além de aproximar o artista da obra como um todo, pois a minha contribuição estará de forma concreta e visível na realização. Depois disso, o espetáculo estreou e até hoje encanta o público que assiste!
PL: Ribamar, eu vejo uma esquete muito importante para espetáculos que estão iniciando. É como se o currículo da obra estivesse crescendo. Você acabou de trazer o quinto festival de esquetes. Tem algum espetáculo que você tenha visto crescer após esses festivais que "Os Ciclomátcos" promoveu?
RR: Sim. Muitas esquetes se tornaram lindos espetáculos, como por exemplo "Benedita", da Bahia. Outro espetáculo foi "Acorda Amor", com a atriz Florencia Santangelo; e "A Jornada de um herói", com artistas da Baixada Fluminense. Isso prova a importância dos festivais de esquetes. Nós mesmos temos um caso desses que é o espetáculo "Minha alma é nada depois dessa história", que começou como esquete e se tornou espetáculo. Hoje se apresenta pelo Brasil e já foi encenado na Alemanha, França e Peru.
PL: Você que viaja tanto por esse Brasil adentro, nota a diferença no espectador? O público do interior parece estar mais interessado no teatro que os espectadores das grandes metrópoles. Pergunto isso, pois acompanho os passos da companhia e percebo que o público comparece mesmo. O que tem a dizer?
RR: Total. Por ser um público que, por diversas razões, não tem acesso ao teatro, eles estão ávidos por assistir e tem uma relação diferente com o espetáculo. Eles conversam, interagem, vivenciam o teatro como nos tempos de Shakespeare e, no final, o carinho com os artistas é incrível: agradecem e pedem para voltar. É algo indescritível! Em muitos casos, o nosso teatro será o único que muitos deles assistirão na vida! Por isso, volto a dizer que temos a responsabilidade de fazer espetáculos para públicos diversos, sejam eles da capital ou do interior, pois no final das contas, todos necessitam da arte e nós temos que acolher!
PL: Percebi que nos últimos tempos o teatro do subúrbio parece estar ocupando espaços, ganhando prêmios, entrando com mais força no circuito. Qual é o seu olhar nesses 26 anos? Pergunto isso, porque não me lembro de ver você levantando essa bandeira, mas vejo um Ribamar muito focado no trabalho, no dia a dia, cavando espaços e semeando.
RR: Realmente não penso nisso como bandeira, pois não sou muito adepto a rótulos. Fazemos teatro suburbano desde nossa criação. Um dos nossos primeiros trabalhos foi intitulado "Super Coffin ou Sonho de uma noite de Velório", de um autor periférico de Campo Grande, o saudoso Odir Ramos da Costa. O espetáculo se passa numa funerária do subúrbio carioca, ou seja, já estávamos vivenciando o teatro periférico desde nossa fundação, em 1996. Já tínhamos em cena homens e mulheres pretas como protagonistas dos espetáculos, como nos espetáculos "Consummatum est, amargasalmas" e "A Corrente de Eléia". Hoje percebo que estávamos à frente. Fico muito feliz que nosso trabalho tem rendido frutos, mas isso vem da labuta cotidiana, que não é fácil. Penso que, por muitas vezes, estas bandeiras também abrem espaços para oportunismos, com uma galera que surfa na onda e, quando vemos, não tem esta história periférica e suburbana. Mas este é o ônus. O meu olhar para estes 26 anos, caminhando para os 30, é que devemos celebrar e valorizar cada vez mais estes artistas que acreditam no mesmo ideal comigo! Juntos somos muito mais fortes!
PL: As cias periféricas, também estão sendo formadas com doutores, mestres, pessoas com base suficiente para excelentes montagens, participando de editais e sendo contemplados, mesmo assim, ainda ouço reclamações sobre a dificuldade de fazer teatro na baixada, por exemplo. Poderia nos explicar essas dificuldades, já que estão ocupando espaços, como os demais?
RR: Acredito que realmente, apesar dos espaços, ainda existe muito preconceito com os trabalhos periféricos. Ainda muito do que se vê no mercado carioca se localiza na Zona Sul do Rio. Temos muito que lutar ainda. Hoje estamos muito preparados para concorrer em editais e leis, mas ainda percebemos que, em diversos editais, sempre estão os mesmos nomes como contemplados. Aos poucos, furamos esta bolha. Mais ainda temos muito o que lutar. Uma Companhia como "Os Ciclomáticos", se estivesse localizada na Europa, já teria verba de manutenção anual para continuar a pesquisa e reverberar em escolas e universidades o seu conhecimento. Aqui, no Brasil, ainda estamos longe disso. Precisam entender que, além de mobilizarmos a economia criativa, somos também construtores de saberes. Acredito que ainda falta muito para este lugar, mas estamos na luta e na resistência todos os dias!
PL: Se você pudesse falar diretamente com um político influente, o que você pediria para o subúrbio do Rio de Janeiro em relação às artes cênicas?
RR: Explicaria para ele que ter uma companhia de teatro neste país é valorizar o patrimônio imaterial, explicar que quando uma companhia de teatro suburbana leva para outros estados e outros países, está levando o nome da favela, da cidade e do estado. E isso é algo que deveria ser valorizado de cara, viabilizando as viagens, abrindo espaços e teatros para estes coletivos. Este é o papel de um gestor: abrir caminhos para as potências culturais que sua cidade possui. Ah, e solicitaria também que abrisse um centro cultural e espaço teatral em cada favela e periferia desta cidade, para que outros espaços tivessem esta experiência tão importante para a construção real do que chamamos de cidadania!
Ribamar, agradecemos por suas respostas. Saiba que estamos torcendo por vocês e felizes por ver uma companhia voando alto, ocupando territórios tão significativos.